NÓS VAMOS TODOS MORRER

Comentários sobre o filme "Don't Look Up", escrito por Camila Jourdan (CONTÉM SPOILER)

A primeira coisa que se pode observar sobre ‘Não olhe para cima’ é que não é uma sátira, pelo menos não no sentido de exagerar características para torná-las ridículas, provocando com esse exagero a crítica pelo riso com a caricatura. A sátira perde seu poder de intervenção política pela ridicularização quando o ridículo é afirmado como norma. A questão hoje é que a realidade política espetacular se tornou uma sátira de si mesma, e é exatamente por isso que a obra cinematográfica em questão pode parecer uma sátira sendo totalmente realista ao mesmo tempo. Em todo caso, perde-se o poder de crítica porque se a sátira poderia criticar precisamente por exagerar, tudo que ela poderia fazer já está dado no próprio real e ainda mais.

“Não há nada a criticar em Donald Trump. Ele já absorveu e incorporou o pior que podemos falar sobre ele. Ele o encarnou. Ele carrega no peito todas as queixas que jamais pensamos poder lhe fazer. Ele é sua própria caricatura e tem orgulho disso. Mesmo os criadores de South Park jogaram a toalha: ‘É muito complicado, agora que a sátira se tornou realidade. Tentamos verdadeiramente rir do que estava acontecendo, mas não conseguimos manter o ritmo. O que acontecia era muito mais engraçado do que podíamos imaginar. Assim, decidimos esquecer o assunto, deixá-los representar sua comédia, e nós faríamos a nossa.’ Nós vivemos em um mundo que se estabeleceu além de toda a justificação. Aqui a crítica não pode mais nada, não mais que a sátira.” (COMITÊ INVISÍVEL, Motim e Destituição, p.08)

Se a sátira perdeu o seu poder enquanto sátira porque virou descrição adequada de um real satírico, o valor do filme talvez esteja em deixar isso evidente. O espetáculo é caricatural. Ninguém pode provocar o riso por um real exagerado quando o exagero é a regra. Adiantar-se à própria ridicularização é fazê-la perder o seu poder como comédia. Então, penso que não há comédia em ‘Não olhe pra cima’, ainda que possamos rir em alguns momentos do filme, é sempre com mais desespero do que com leveza. Quem poderia ter vivido 2020, ouvido as declarações de nossos políticos sobre a pandemia, e achar que o filme exagera ao retratar o fenômeno do negacionismo? Não é exatamente o que vivemos hoje com o colapso climático sendo varrido pra debaixo do tapete?

Quem nunca ouviu lamentos sobre a destruição de coisas sendo mais importante do que sobre a destruição de vidas? O filho da presidente é uma personagem que merece uma análise própria. Literalmente, o último homem. Diante da eminente destruição do planeta, sua última declaração é: “vamos rezar pelas coisas que serão destruídas, eu até respeito quem está rezando pelas pessoas, mas eu gostaria de rezar pelas coisas”. Pode parecer exagerado, mas não pra quem viu os moradores do Leblon levando flores para os manequins da Toulon enquanto ignoravam as mortes nas favelas. Não para quem viu as vidraças quebradas indignarem mais do que casas demolidas com crianças dentro. O filho da presidente não é exagerado, ele encarna um modo de vida. Vivemos um mundo que reza pelas coisas mais do que pelas pessoas.

A grande heroína do filme é a doutoranda brilhante que descobre o cometa e é taxada de louca, enquanto o professor-orientador homem hetero cis branco leva todos os créditos, sendo seduzido pela fama e reconhecimento. Ora, quem nunca viu mulheres brilhantes serem taxadas de descontroladas por expressarem suas opiniões enfaticamente enquanto homens lucram com suas descobertas? Quem nunca viu mulheres serem invisibilizadas e expostas por seus namorados? Quem poderia imaginar que a figura do homem poderoso não fosse virar produto enquanto a mulher é tomada como descontrolada? Não é como se a narrativa subscrevesse isso, pois, conforme o filme avança, a doutoranda vai sendo cada vez mais excluída e se aproximando de condutas cada vez mais éticas, enquanto o homem branco vai sendo cada vez mais inserido na conduta mercadológica dos poderosos. Infelizmente, o final não é tão realista neste sentido, porque ele se arrepende e é perdoado por sua família e amigos. Ou talvez aqui também seja exatamente assim que realmente acontece. Cumpre notar que a previsão do algoritmo pra ele seria morrer sozinho, mas ele contraria o previsto se juntando aos excluídos e sendo aceito novamente por aqueles que traiu. Mas vou desconsiderar este ponto aqui.

Outra coisa que o filme aborda muito bem é como no capitalismo contemporâneo a continuação da vida na Terra vale menos do que as eleições, ou o enriquecimento ainda maior daqueles que já dominam o mundo. Que estes preferem abrir mão da vida na Terra diante de perder suas disputas por poder. Não se trata, claro, apenas de dinheiro, este seria fácil dizer que não valeria mais nada com o fim do mundo. Mas: “eu não sou apenas um empresário, eu controlo todos os seus dados, sei mais sobre sua saúde do que seu médico, sou capaz de prever seus pensamentos, seus desejos mais íntimos, e até como você vai morrer.” Trata-se de um projeto de poder, de dominar a natureza e o outro até a sua aniquilação como alteridade, transformando tudo e todos em mercadoria. “Eu não sou apenas um empresário, eu darei o primeiro passo em uma nova evolução da humanidade intergalática.” Trata-se de um projeto de poder cego pela sensação de onipotência diante da possibilidade de impôr dominação, projeto colonial e, pode-se dizer, suicida. Quase podemos o ouvir dizer, eu não sou apenas um empresário, eu sou Deus. Por que eu me curvaria diante do método científico, por exemplo? Este projeto não é um exagero, não é uma ficção, é um projeto em curso, está destruindo o planeta, está destruindo a vida na terra, e poucas pessoas ousam olhar para cima. O que são mais bilhares de mortes nas costas? No final das contas, tudo dando errado, como sabem que é o mais provável, bastaria esses abastados fugirem para colonizar outros mundos, deixando o fim do planeta no passado. O que eles, aliás, já estão tentando fazer.